top of page

Bestiários diários

Notas mínimas sobre pontos fracos

Cartografias, a arte de desenhar desejos

Texto e fotografia de Virginia Mesías

Foto Portada (1).JPG

        Mi cuerpo es todo lo que yo no, todo lo que siempre tengo além. Mais aqui estou. É a única obra que um dia, talvez, poderei construir. Ele é aquele que viverá muito mais tempo depois de mim. Meu corpo é tudo o que não tenho: é aquele que me responde quando falo; quando me mexo, ele me alerta para onde não devo ir; ele fica doente por mim, para me tirar do perigo. Ele se expressa antes que eu saiba o que vi, o que me surpreendeu, o que vai me seduzir, o que vou desejar quando algo novo me pegar na pele. E é aí que já soltamos. Porque ele vive para mim e eu nunca posso alcançá-lo.

Foto 1 (1).jpg

         Este es su registro del deseo , as histórias que ele vai escrever não são sobre mim, meu discurso não é confiável, mas a linguagem dele é, ele sabe. E as histórias começam a falar, antes que o tempo mude e eu me perca, enquanto alguém ainda dorme na minha cama, sozinho. Porque meu corpo está deste lado das portas, escrevendo. Por isso, meu corpo vai começar marcando os parágrafos, ordenando os pensamentos na prosa, cada recuo é um estado diferente de reflexão, um estado diferente de sua pulsação que respira comigo. Enquanto a escrita no papel marca ritmos, tons, pausas — espaços em branco que, já sabemos, valem tanto quanto o que não é dito —, alguém dorme sozinho do outro lado do mundo; porque uma porta justa no meio da casa é suficiente para dimensionar o que é estrangeiro e o que é conhecido. Porque todo território cotidiano — labirinto sutil — guarda em seu centro o que não podemos imaginar: o tesouro e o monstro no  ao mesmo tempo.

Foto 2.JPG

       Pensamiento, emoción, prosa: notas sobre el deseo para que, cuando deba reagir, a escrita pode ser encontrada nas proximidades. Porque é preciso estar bem desperto, muito alerta, tudo o que não foi feito antes para saber o que está certo, mas não, ele fala outra coisa, vai me soltar e vai me desviar. Sin  para fingir isso. E o café está pronto e ele escreve, fora de tudo. Ele apenas escreve, mestre de si mesmo —e de mim, claro—. Não pensar, ele me diz, sem linhas de vontade; primeiro lúcido, depois liberado, nunca, nunca cego. A certeza da ação indicada, dos gestos assim medidos; nunca finja isso. Primeiro, a pesquisa; então, a aposta, porque a chegada é tão ampla quanto as possibilidades de fuga. E cuidado com o espírito de desejo constante e consistente, não é seguro, não é. O corpo sabe disso e ri e continua escrevendo, e eu olho e me desespero porque sei que não posso parar, não. E eu sei que é hora de quebrar o hábito, sair e deixar ir. Todo lo que no encaja se limpia.        _cc781905-5cde-3194- bb3b-136bad5cf58d_         Porque el lenguaje me oculta, me encierra y tapa todo descanso. É por isso que vou girar o mundo, vou fazê-lo se mover na minha direção, vou olhar para a escuridão. E, então, a tinta com que meu corpo escreve se esgota e é preciso trocar ferramentas, instrumentos e papel. Como papel, minha pele; como a pele, meu quarto, minha zona mais fechada. Às vezes procuramos coincidências, sinais de boa sorte até em uma folha. Nada disso ajuda, nem mesmo o dicionário. "Deixe o movimento das coisas me levar", diz ele.

Foto 3.JPG

-------------------------------------------------- -------------------------------

Texto e fotografia: Virginia Mesías

animar

Texto e fotografia de Virginia Mesías

1 Foto Portada.jpg

Imediatamente atribuí meu erro ao cansaço,

para a escuridão da casa, e para aquele meu desejo de

encontrar coisas estranhas em todos os lugares.

Maria Inês Silva Vila

    Há um tempo específico naquela falta de luz da manhã mais cedo, mais profunda e mais aurora. Naquela última parte da manhã, quando o brilho tênue do céu ainda não atingiu o limite que a cidade estabelece para o dia. Porque o amanhecer também é chamado de tempo durante o qual o amanhecer nasce. Alba é também o último quarto em que se divide a noite: em todos os seus quartos e corredores e escadas e terraços que nunca conseguimos ver onde nos chamam. Se não, o amanhecer está fora de uso —como tantas outras expressões ambíguas ou arcaicas que esquecemos e perdemos porque não sabemos o que fazer com elas—; era usado para responder a quem perguntava o óbvio, o óbvio ( desobviar , desconfiar do óbvio, disseram-me um dia). E o que há, então, nessa última passagem da noite? Que vestígios do sonho, do que foi guardado tão fundo, são mostrados ao abrir o primeiro olho (ou seria o terceiro)? Sair do lençol que envolve um corpo que é outro, porque nunca é o mesmo desperto que se perde naquela estranheza do outro espaço, do outro buraco, aquele do qual, por vezes, não saímos.

2 Foto Medio.jpg

    Não saímos por laços e braços, fios e ventos, sombras que permanecem em nós, ao nosso redor, dentro de nós e capturam nossos espíritos. Ou o núcleo , que, dizem, é algo que entra no oco de algumas peças para lhes dar solidez. Ar, espírito, corpo, tigela, matéria, substância. Como, então, tirar o corpo daquele estado, daquela circunstância? Como usá-lo durante o amanhecer em direção à primeira luz cinzenta? Através do preto e branco que nos prende por dentro. Mas o que soa escondido na área mais aberta da consciência quando acordamos? Que música? Que discurso circular? Quanto trazemos da escuridão do sono e guardamos quando começamos a ver os contornos indistintos de coisas que ainda não têm forma? O que estamos procurando nessa hora? O que está escondido dentro que precisa dessa sombra tão diferente, tão transparente, para circular de nós para aquele fora do silêncio sem outros? Sem nada porque se manifesta num não-tempo : já não é noite nem madrugada, ainda não começou nenhum dia, só nós. Sozinho. Também não há pensamentos definidos, eles não deveriam. São fumaça, fantasmas, nossas próprias almas que falam baixinho durante aquele curso surdo e vítreo de clareza, que começa a filtrar e abrir em apenas fragmentos de luz frágil. Alma frágil. A sensação de não estar em lugar nenhum ainda. A sensação de não pertencer e habitar um corpo que ainda não é nosso, que ainda não existe; a certeza de outra realidade que respira ali mesmo, adormecida atrás da porta daquele quarto em que ainda não entramos para abrir as janelas; aquela outra possibilidade que espera sentado na mesma poltrona onde vamos ao lado do café; aquele outro mundo que começa a nos observar com espanto, enquanto negamos acordar e o primeiro pássaro soa e a primeira nuvem rasgada aparece. Aquele outro eu que persigo com desejo, com inquietação, mas não arrisco.

3 Foto Final.jpg

-------------------------------------------------- -------------------------------

Bestiários diários

Notas mínimas sobre pontos fracos

Os Bestiários são, na literatura medieval, coleções de histórias, descrições e imagens de animais reais ou fantásticos; obras em que se apresenta uma vasta lista de animais, aos quais se confere um significado alegórico ou se convertem em símbolos de uma determinada virtude. Fidel Sclavo diz em “O Elefante e a Formiga. Um bestiário” que a função desses livros era marcar o território dos medos e exorcizá-los da seguinte forma: juntar todos os monstros em um livro, para trancá-los ali, como quem esconde seus fantasmas em determinado lugar. (...) A paixão pelo estranho, pelo maravilhoso, pelo inusitado, pelo mítico, não contradiz a repulsa gerada pelo monstro... .

 

São crônicas íntimas de uma vida comum, como a sua, você que também sabe que os monstros estão aí, aqui. Sentam-se conosco quando o dia termina e a noite começa, seguram nossas mãos, nos escutam, dormem no mesmo travesseiro. E de manhã ficam para o café, enquanto dura aquele tempo ainda sem vigília, o tempo em que as escrevo. Para não esquecer os perigos, saiba quais pedras estão instaladas no peito, no estômago, no corpo.

 

Bestiarios cotidianos.jpg

São notas do dia. Fraquezas do dia a dia. Tudo o que não posso salvar, tudo o que me escapa e escrevo para que o pó não leve, e eu com ele, com eles. Registros do que me acorda e se dispersa nas horas, no hábito de viver como me ensinaram: sair, trabalhar, estar bem, ter amigos, cuidar da família, sorrir. Então eles voltam. Eles sempre voltam. São as ameaças que nos cercam. E não nos abandonam. Porque nós os queremos, muito escondidos, nós os queremos.

bottom of page