Piel Alterna
Iansá
Por Danuza Meneghello. Florianópolis. Brasil

Foto: Mariela Benitez
Fui educada para decorar e esquecer.
Fui estudante durante o regime cívico-militar no Brasil. Nasci com ele. 1964. Onze de abril.
Meu pai não estava na maternidade. Minha mãe, Maria, foi sozinha. Estava aquartelado.
Ela conta que na hora do parto, na sala, conversavam sobre a situação política, sobre o exército na rua, os conflitos e as incertezas. E durante a conversa ela teve que dar o alerta: a criança tá saindo!
Nasci rápido. Me pegaram no pulo.
E segui assim pela vida, impaciente, querendo entender as conversas, as realidades, os silêncios, “voando as tranças ou desgadeiada”, como diria meu pai.
Fui ensinada para não saber.
Decorei a tabuada, muito mal, confesso. Decorei o nome de rios, relevos e climas (mas me apaixonei pela geografia bem depois). Decorei o this is a table, e é o que sei basicamente de inglês. Com dificuldade decorei o cruzamento das raças, a tal da miscigenação, e não via sentido nenhum naquilo. Decorei as conjugações e a tabela periódica.
Decorei. Decorei. Decorei.
Na escola me enfiaram moral e cívica, religião (gostava somente de cantar) e competir na educação física. As meninas cozinhavam, bordavam, pintavam e os meninos batiam martelos e serravam tábuas. Alias, para quem nasceu correndo era algo que parecia bem mais interessante.
Mas alguma coisa deu errado.
Penso que foram os livros. Não queimaram o suficiente. Em casa, mesmo meu pai sendo milico, lia muito. Coisa que já trazia problema para ele dentro do quartel. Várias vezes foi detido por desconfiarem que ele era comunista. Quando me contava sobre estes acontecimentos achava engraçado, “eu comunista?”.
Tinha todo o tipo de livros em casa: fábulas do mundo inteiro, enciclopédias, filosofia, romances brasileiros e estrangeiros. Devorava.
Certamente foram os livros.
Descobri na escola, de freiras, a biblioteca. Se tornou espaço de visita frequente. Li todos os autores brasileiros mais conhecidos. Entre suas letras fui descobrindo outros Brasis. Gente muito diversa das que tinham me feito decorar. Negras e negros, povos indígenas, tantos e tão diversos que jamais conseguiria lembrar de todos os nomes. Gente do povo. Mulheres injustiçadas. Miseráveis.
Os livros me falavam coisas que no silêncio da escola e da casa não ouvia.
Os livros trouxeram a clara luz do conhecimento e fizeram brotar a memória. E as perguntas.
Foram os livros. E foi a rua. E foi a música, que chegava pelos discos de vinil.
De criança criada até os seis anos no interior, me tornei guria da cidade. E percebi que quando queriam me trancar em casa era exatamente o momento que deveria sair.
A rua é a melhor escola. A estrada é boa mestra e dá lição verdadeira.
Em Florianópolis, por suas ruas, aprendi e aprendo.
Aprendi que “o povo unido” é ameaça e deve ser calado. Aprendi que quando chega a cavalaria “o pau vai quebrar no lombo do trabalhador”. Na rua soube dos desaparecidos, dos torturados, dos afogados, dos assassinados. Aprendi que os ditadores quando descem de suas sacadas e vão andar no meio da população, apanham e são colocados pra correr. De cima de uma árvore da Praça XV, vi um deles, em novembro de 1979 receber a lição de que a liberdade é seiva que mesmo sobre tortura e repressão rompe muros e volta a brotar. Sempre.
Na rua me fiz mulher. Me fiz vento. Apressada para participar, falar, questionar, escrever.
Nestes tempos de peste, me faz falta seu movimento, seu burburinho, suas cores e cheiros. Na rua o encontro acontece e a resistência política é possibilidade de ação.
Fomos educados para decorar e esquecer.
A morte de quatrocentos e dezessete mil brasileiros, em maio de 2021, não é porrada suficiente para despertar parte da população deste país. Pedem a volta da ditadura, da monarquia, do império. Pedem a limpeza do Brasil.
Somos, ainda, educados para decorar e esquecer.
Fazem leis, escrevem decretos, mentem, iludem e proíbem. O Estado brasileiro, hoje, com o uso da violência, ora explícita ora velada, mata, tortura, oprime e cala. Insiste na desmemoria, no esquecimento e no perdão hipócrita.
Mas inventamos versos, verbos e formas de permanecermos atentos e fortes. E fizemos da memória farol contra as mordaças da mente e das vozes.
E cultivamos a raiva, digna, e assim o solo permanece fecundo de rebeldia.
E jamais, jamais esqueceremos. Nunca.
Danuza Meneghello. Dia sete de maio de dois mil e vinte um. Dezoito horas e vinte e quatro minutos. Vento sul.
Capoeirista e professora de geografia da Universidade Federal de Santa Catarina Colégio de Aplicação.

Foto: Mariela Benitez